por Raph Arrais.
Conta a lenda que no dia 28 de novembro de 1244 em Konya, na atual Turquia, numa região que era então conhecida como Rum (ou Sultanato de Rum), o grande teólogo islâmico Jalal ud-Din Rumi, herdeiro espiritual da tradição do próprio pai, Baha’ud Din Walad, ensinava a cerca de uma ou duas dúzias de discípulos às margens de um pequeno lago da região, sob o sol da tardinha persa.
Do próprio pai, Rumi aprendeu teologia e os cânones da literatura clássica árabe. De um dos discípulos do pai, por cerca de uma década aprendeu todos os segredos do chamado “conhecimento inspirado”, a fonte para se trilhar a via espiritual. No entanto, aquela altura, já perto dos 40 anos, ele era mais conhecido como um mestre da filosofia, da poesia clássica, da teologia, da jurisprudência e da moral – muito mais um propagador de conhecimentos, sejam intelectuais ou espirituais, do que propriamente um místico. Isso estava para mudar naquele dia…
Vindo pela estrada que beirava a margem do lago onde estavam, surgiu um andarilho de idade relativamente avançada, envolto num manto negro de feltro ordinário, com sapatos um tanto desgastados, que aparentava carregar consigo o pouco que necessitava para cruzar grandes distâncias a pé. Seu olhar era ao mesmo tempo atraente, magnético, inquisitivo e assustador, de modo que antes que ele abrisse a boca, a aula já havia sido interrompida. Quando ele falou, apontando para a pilha de livros ao lado de Rumi, tinha a atenção de todos os presentes:
“O que há nesses papeis?”
“Aqui só há palavras,” – respondeu Rumi – “em que podem lhe interessar?”
O andarilho, que agora mais de perto se via claramente tratar-se de um sufi (isto é, um sunita asceta), simplesmente caminhou até ao lado de Rumi, apanhou a pilha de livros e, num rompante repentino de aparente insanidade, atirou tudo nas águas do lago!
Rumi levantou-se, furioso, e o repreendeu:
“Você faz ideia do que fez? Alguns desses livros continham manuscritos importantes de meu pai, que não se encontram copiados em nenhum outro lugar!”
Então, para espanto de todos os presentes, que o testemunharam à posteridade, o sufi se encaminhou até a beirada do lago e, entoando uma espécie de cântico meditativo, de alguma forma fez com que os ventos soprassem em sua direção, trazendo todos os livros de volta para a margem. Ele os recolheu e levou de volta a Rumi. Para a surpresa geral, estavam perfeitamente secos.
“Qual é o segredo envolvido nisso?” – indagou o teólogo.
“Aqui só há êxtase espiritual,” – respondeu o sufi – “em que pode lhe interessar?”
Antes que pudesse refletir sobre a enigmática resposta, Rumi constatou que os manuscritos do pai estavam em branco:
“Ei! Mas as palavras de meu pai sumiram; faça com que elas retornem, feiticeiro!”
“Jalal ud-Din, deixe para trás as palavras de seu pai, elas já tiveram a sua utilidade. Agora é hora de escrever as suas próprias palavras.”
“Como sabe meu nome?”
“Meu antigo mestre, em Tabriz, me disse que em Konya vivia um grande conhecedor da nossa religião islâmica, que já havia cruzado seu caminho com Farid ud-Din Attar e Ibn Arabi, e que hoje vivia enjaulado numa gaiola de palavras. Então eu, que também sou conhecido como parinda [o pássaro, ou o voador], resolvi vir até aqui para libertar outro pássaro.”
Desde esse dia, enquanto ambos estiveram livres para tal, Jalal ud-Din Rumi e aquele sufi andarilho, chamado Shams de Tabriz, jamais deixaram de dialogar sobre Allah (swt), sobre o amor, sobre a via espiritual, enfim: sobre tudo o que não se encontra nas palavras e nos livros. Tal conjunção de almas ficou conhecida na tradição do sufismo como “o encontro de dois oceanos”.
Shams se recusava a dar maiores detalhes da sua história de vida. Uns dizem que a sua família era ismaelita, uma vertente dissidente e minoritária do Islã, e costumavam se passar por loucos ou tolos, talvez de modo a não levantar maiores suspeitas sobre suas práticas religiosas heterodoxas. Outros afirmam que ele era originalmente um membro da tribo dos Hashishins da Síria, liderada pelo lendário Alaodin, “O Velho da Montanha”, cujas práticas religiosas admitiam variadas formas de estados alterados de consciência, principalmente através da dança. Ora, mais tarde, privado da companhia de Shams, Rumi iria desenvolver um método de dança mística rodopiante conhecida como sama, que mais tarde seria aperfeiçoada pelo seu filho mais velho – talvez ele a tenha aprendido de Shams, ou talvez tenha sido indiretamente influenciado por ele.
Fato é que, uma vez privados das aulas de seu mestre, que agora passava seus dias e suas noites na companhia inseparável daquele estranho andarilho sufi, dialogando sobre assuntos que não se liam em nenhum livro, os discípulos de Rumi tramaram para afastá-los. Na primeira vez em que Shams deixou Konya na surdina, temendo causar maiores problemas naquela comunidade, Rumi iniciou a sua jornada pela poesia, motivo principal por ser celebrado até hoje, no mundo árabe e fora dele. Desesperado ante a ausência do amigo, Rumi começou a lhe endereçar belíssimas cartas em formato poético, até o dia em que conseguiu convencê-lo a retornar de Damasco, onde havia residido durante a sua ausência.
Ante tal insistência, no entanto, os discípulos resolveram assassinar Shams, e enterrá-lo num poço da região. Com a ausência derradeira do amigo, Rumi começa a dançar em êxtase, recitando os poemas que o imortalizaram, todos eles cuidadosamente anotados pelos seus discípulos…
Não importa, os dias e as noites em que eles passaram juntos estão hoje marcados na Eternidade, pois poucas vezes se viu na história humana dois sufis que se complementassem tão bem um ao outro: Rumi, o teólogo ortodoxo que, não obstante, dissolveu-se inteiramente nas profundidades do Amor; e Shams, o wali [amigo de Allah (swt)] andarilho de origens incertas e nebulosas, cuja estatura espiritual ofuscava a todos, como o sol.
“Quando [finalmente] encontrei Rumi, a primeira condição foi de que não me apresentasse como um mestre. Allah (swt) ainda não criou o homem que possa ser como um mestre para ele. Eu tampouco estou em condições de ser o discípulo de alguém, já estou muito além dessa etapa.” (Shams de Tabriz, Maqalat, 33)
“Eu tinha em Tabriz um mestre espiritual, Abu-Bakr, e foi dele que obtive todas as piedades. No entanto, havia em mim algo que meu mestre não pôde ver; de fato, ninguém era capaz de vê-lo. Mas Rumi o viu.
Eu era água estagnada, fervendo e entornando-me sobre mim mesmo e já começando a cheirar mal, até que a existência de Rumi me encontrou; então aquela água começou a correr e continua correndo doce, fresca, saborosa.” (Shams de Tabriz, Maqalat, 245-246)
O amor não é condescendência, nem livros ou qualquer marca em papel, nem o que uma pessoa diz para a outra. O amor é uma árvore com seus galhos se elevando ao Alto, suas raízes se aprofundando na Eternidade e nenhum tronco! Você o viu? A mente é cega para ele. Seu desejo é incapaz de observá-lo. A saudade que sente desse amor vem do seu interior. Quando se tornar o Amigo, sua saudade será como o náufrago no oceano agarrado a um pedaço de madeira... Eventualmente, madeira, homem e oceano se tornam um ser ondulante: Shams de Tabriz, o segredo de Allah. (Jalal ud-Din Rumi)
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Obs.: Texto destinado exclusivamente a Revista Al Hakim.