A escuta de “coração a coração”
Artigo publicado na terceira edição da revista Al Hakim
Por Cláudia Regina Telles
Bismillah Ir-Rahman Ir-Rahim… Rumi, o poeta persa e místico Sufi do séc XIII, traduziu lindamente a realidade interior que se almeja, “o Sufi é um filho do momento”, aquele, que a cada alento está com todo o Espírito presente no Coração, a experimentar cada instante de existência. Este grau sofisticado de simplicidade que um Sufi conquista, é o que se nomeia como Abertura do Coração. “Ser um filho do momento” é a suprema entrega amorosa, o viver com o Coração aberto ao Divino, a Realidade e tudo manifesto.
A percepção que transcende o estado e em plena atenção, o Ser no estar `a Escuta, num sentido profundo e irrestrito a tudo, a cada instante, como se fosse a primeira vez… Na Vida, a pessoa pode guiar-se a partir das memórias (passado) ou da inspiração (presente), e os Sufis são aqueles que escolhem viver intensamente, em Presença, respirar o Sagrado Instante e inspirar-se no Divino, e põe à escuta.
“Dentro deste mundo há outro mundo, impermeável às palavras. Nele, nem a vida teme a morte, nem a primavera dá lugar ao outono” Rumi.
E na busca do mundo além das palavras, no “interior e exterior” as funções se alternam a cada inspirar e expirar a vida. E imagino, que “com-cordis” que o falar e o escutar com o Coração, seja um ato amoroso, que aproxima, nos torna sensíveis e empáticos ao coexistir com toda realidade da Vida. Em estado de recordação e atentos à respiração secreta, ao canto íntimo de tudo a sussurrar, Allah… Allah… Allah…
Escutar, um segredo, uma síntese possível do que propõe o Sufismo, através de sua mística devocional, que impregna de Amor as práticas Islâmicas, e as tinge com o Vinho Místico, que embriaga e conduz vastidão de Amor e Sabedoria. A Escuta Consciente “de Coração a Coração” no acontecer das relações, é atenção atravessada da mística Sufi. O Tasawwuf/Sufismo, é considerado o Coração do Islã, o “Caminho do Coração”, pois oferece a Sabedoria de um conhecimento inspirado, zikers, poemas, contos, práticas e ética que objetivam a submissão da mente, do desejo e instinto, através da disciplina interior e exterior. A purificação do Coração, através da auto-observação psicoemocional, adoração, relação com o Mestre e a vivência em Tariqa; tudo é orquestrado para conectar e limpar o Coração Espiritual do murid (discípulo/aluno). E se o aspirante a Sufi é sincero e sua entrega for incondicional a este processo de trabalho espiritual, conquista o que busca, um Coração Puro. No transcender da dualidade em si, vai além da fala e da escuta, ao “vazio cheio” da União com Deus/Allah.
A Escuta “de Coração a Coração”, se revela num outro aspecto muito essencial no trabalho interior, sutil e bastante prático que o Tasawwuf ensina, que é o Adab. O significado em árabe é etiqueta, cortesia e gentileza, Adab é, portanto, um refinado e ético modo de relação, no existir e conviver. E em nossa cultura ocidental talvez respeito, simplicidade, humildade e refinamento do comportamento, pode ser uma alternativa para definir o que é Adab.
“Atenta para as sutilezas que não se dão em palavras, compreendo o que não se deixa capturar pelo entendimento” Rumi
A poesia sempre traduz com beleza e síntese, na fina escuta, captura com palavras o que é essência do que seja Adab, assim o fez Rumi e tantos outros. O Coração Sábio via a percepção, é e está sensível às Sutilezas Divinas presentes na Criação, sendo Deus/Allah Fonte Original e Criador de tudo manifesto.
A fala e escuta “de Coração a Coração”, são o coração da Mística Sufi na relação com seu Maliana (amado Mestre), seu Sheikh, que em árabe significa ancião, soberano e líder, que serve a linhagem que representa. É uma função laboriosa, ensinar algo tão sutil. Cada Ordem Sufi tem uma Tariqa (escola) guardiã do arcabouço de conhecimentos específicos, referentes a “Mística” interior, práticas devocionais e Adab. Cada Tariqa reúne pessoas por um compromisso com Allah e vínculo espiritual entre si, para em convivência, aprender, espelhar-se e recordar a Unidade. E o Sheikh “de Coração a Coração” orienta os murid que o solicitam, em presença ou via intuição. O aprendizado para a relação “de Coração a Coração”, acontece por via direta, estudos, através da entrega com todo Coração e Alma. Há um elemento importante no ensino, a confiança no instrutor, o Sheikh, e este ensina “de coração a Coração”, o Adab, seja através da Presença, comportamento, conteúdos de textos (livros como Rumi, Ibn Árabe e tantos outros) ou Sohbat (fala inspirada), a maioria deste ensinamento para Vida Espiritual e na dunya.
Há no Coração Humano, uma natural e intuitiva sensibilidade à fala e a escuta da voz da “Pureza” em suas manifestações na harmonia, bem estar, equilíbrio, na fé e virtude diante das vicissitudes da existência que conduzem, nutrem estados de conexão e felicidade; também do que sejam os valores egóicos, as paixões, a descrença, a separação e o sofrimento. O escutar a própria respiração, como diálogo com o Allah, fazer de cada alento um recordar e uma celebração da Vida. Escutar com o Coração é ir além, adentrar os ensinamentos ocultados no Alcorão e através da leitura das Suras encontrar, a Graça, da compreensão ou intercessão de Allah. Acordar e repousar, em escuta a receber os desígnios da Vontade Divina e recitar Alhandulillah.
A meditação hoje tão difundida, é relação, é parar a fala, o discurso da mente e escutar o mundo que está para além do mundo. E o Sufismo oferece maneiras sábias, que atendem as necessidades dos tipos de personalidade. Em Escuta meditativa se reconhece a finitude, se acolhe a fragilidade da existência, se contempla a astúcia dos Nafs e a preciosidade da Vida.
A escuta consciente, de Coração a Coração é relação incondicional na essência de tudo. O escutar a Vida a desvelar o refinamento Divino, que recorda o que está impresso num alento único, Allah, no Coração da Criação. Esta qualidade e incondicionalidade da Escuta a que nos convida o Tassawf, extrapola a “Viver Interior” ou “Espiritual”, pois o murid, em sua busca sincera, impacta os ambientes relacionais como o lar, a família, o profissional e o comunitário e social.
A Vida e’ relação, e a comunicação tem um papel importante nos vínculos e intercâmbios diversos, e confere a estes, maior substância e permeabilidade. A fala, a voz do Coração encontra receptividade, às elaborações verbais e questões são melhor acolhidas por outro Coração. E o escutar o outro sem julgar, criticar, interromper, aconselhar ou dar soluções aos problemas. Vícios de escuta são substituídos pela Presença que acompanha, media, irradia vibrações que harmoniza e equilibra, que pergunta e investiga junto. Às vezes, contar um conto, é o melhor Adab, o que contribui para a escuta de si, a auto percepção e acesso a Verdade encoberta pelo verniz egóico, que em silêncio, o outro de nós, nos auxilia a enxergar. Neste relacionar dialógico, floresce a clareza na mente, a compreensão sobre os Nafs, a paz e serenidade para uma possível tomada de Consciência da Vontade de Allah.
Nessa Escuta íntima ou relacional, o estado de auto-observação, atenção a respiração e recordação, seja através de recitação silenciosa de Zikers ou Atributos Divinos (99 Nomes de Allah), geram harmonia e homeostase. O murid escutador, acolhe aquele que fala, na Presença no Coração e na Recordação de Deus, nesta relação e ressonância, é possível experienciar alívio, cumplicidade confiável, amorosidade e fraternidade. Nestes intercâmbios, em caso situação que exija um posicionamento assertivo, em conflitos de toda natureza e desarmonias diversas, se não há clareza intuitiva quanto ao Adab, o murid pode invocar o Sheikh a intui-lo e inspirá-lo a melhor atitude ‘aquele momento.
A audição musical, nas práticas coletivas, como indica o Samba, de virado de As Sami, Nome e Atributo Divino, “O Oniouvinte”, o Giro Dervis, é em si adoração e ausculta do silêncio universal. Recitar As Sami, pode nos lapidar o Coração, refinar o auscultar e reflita o que Maliana Rumi nos sugere:
“Ouça com ouvidos de tolerância. Veja através dos olhos da compaixão. Fale com a linguagem do amor”.
Sheikh Nazim Al Haqqani, 40º Sheikh da Ordem Naqshband traduz a Escuta “de Coração a Coração” e a Mística Sufi nas relações de modo belo e sábio, ofereço a ti como síntese:
“Agora estou sentado ao seu lado. Se eu olhar para você (e para todos) como criaturas de meu Senhor, como únicas e perfeitas frutas de excelente criação de meu Senhor, olhando-os da mesma forma como uma pessoa olharia para uma rosa ou árvore frutífera, então estarei sentado em um jardim do paraíso, e todas as pessoas trarão ao meu Coração paz interior. Se pudermos olhar uns aos outros de tal maneira, alcançaremos não apenas aceitação e tolerância, mas familiaridade e afeto e, finalmente, amor e paz.” in Amor, livro de estreia da Editora Naqshbandi, pág. 127;
Que Allah As Sami nos conceda a fragrância de seu Nobre Atributo para que a escute a Ele e a tudo se dê “Coração a Coração”, mística que nos oferece o Sufismo.